quarta-feira, 27 de julho de 2011

Um Dia no Paraíso


1

AMANDA CRISTINA

         Ela sentiu o toque carinhoso em seu ombro. Apesar de não entender as palavras que docemente lhe tocavam os ouvidos, sentia que era algo importante. Virou-se na cama, lutando para não acordar e sentiu aquele toque novamente; agora, um pouco mais forte, como se estivesse ansioso para que a garota acordasse. Conseguiu, então, decifrar um pouco das palavras:
         -... tá na hora de...
         “Brincar, acordar, dormir, correr, comer?”, pensou a garota. Com a mão na boca deu uma breve despreguiçada e percebeu que a mão já tinha saído de seu ombro. Com os olhos embaraçados pôde ver o vulto, dono da mão, saindo de seu quarto. Não se assustou. Sabia quem era.
         Só não se sentia feliz pelo vulto não ajudá-la mais, como acontecia antigamente. Talvez, fosse pelo fato de ela já ser um pouco grande e já saber se virar sozinha. Era bom pensar nisso como uma verdade, mas se essa verdade tinha o poder de afastar pessoas especiais de si, não tornava as coisas melhores.
         Retornando ao pensamento do que tinha que fazer, esforçou um pouco a mente para lembrar-se que tinha de ir à escola. Nas circunstâncias, não achava isso inteiramente necessário, mas era uma forma de fugir da realidade em que vivia.
         As constantes discussões de seus pais, a falta da presença de seu irmão, a escassez da alegria e o constante tédio da monotonia contrastavam com a união e a amizade de amigos leais e especiais, a abundância da alegria e o sorriso que compartilhava com estes na escola. Essas coisas faziam-na esquecer do que era viver triste.
         Deitada, olhando para o relógio acima de sua cabeça, sobre o criado-mudo, pensava em tudo isso e em como poderia mudar esta realidade. Na escola, sua falta de interesse e o seu nervosismo, sempre presente em sua vida, devido ao que passava, tinham-na, já no primeiro bimestre, feito uma das piores alunas de sua sala. Mesmo que isso não afetasse suas amizades, feria seu orgulho próprio ao se lembrar que, em anos anteriores, tinha sido uma das alunas mais talentosas, não só de sua sala, mas também de toda escola.
         Quando tentara remediar a situação, tinha piorado. Como na vez em que fora falar com uma das professoras sobre sua situação na matéria. A professora, fazendo pouco caso do que ela falava, disse que, vendo seu desempenho no primeiro bimestre, tinha chegado à conclusão de que ela seria uma das piores alunas da sala no ano. Ao ouvir isso ela explodiu, pouco se lembrava do que tinha dito, mas falou tanta besteira que isto lhe custou uma convocação de sua mãe à escola.
         Sentou-se na cama e tentou afastar aqueles pensamentos de sua cabeça. Afinal, ainda tinha dois bimestres e meio pela frente e poderia, com certeza, melhorar suas notas. Com um pouco de interesse e uma pitada de calma, conseguiria mudar tudo aquilo. Só não estava tão otimista quanto a situação em sua casa.
         Ao ir deitar-se na noite anterior, tinha escutado quando seu pai chegara em casa. Ele chamara sua mãe, que logo percebeu que ele estava bêbado. Pelo que ouvira, Rosa, sua mãe, tinha tentado ajudá-lo a ir para o quarto, mas ele gritara que não precisava da ajuda de uma mulher para fazer nada. Rosa continuou tentando ajudá-lo mas ele começou a ficar cada vez mais nervoso, gritando ainda mais. Do seu quarto, a última coisa que ela ouviu foi um tapa que seu pai havia dado em sua mãe. No seu quarto, ela cobriu a cabeça com o travesseiro e chorou sozinha e silenciosamente.
         Agora, ainda sozinha e em silêncio, tinha certeza do porque sua mãe não tinha lhe mostrado o rosto quando veio acordá-la de manhã. Quando voltasse da escola, não encontraria sua mãe em casa, pois ela estaria no trabalho. Só voltaria a vê-la à noite, provavelmente, com um curativo no rosto.
         Sabia que tudo isto havia acontecido depois da tragédia que havia se abatido sobre a família. A falta de paz, as constantes discussões, o desprazer de viver a própria vida e... Mas não queria pensar nisso neste momento. Queria se livrar de todos aqueles pensamentos e viver aquele dia sonhando com a hora em que tudo isso ia mudar. Tudo vai acabar bem, pensou, tudo.
         Com um ímpeto ficou de pé, e foi como se todos os seus pensamentos tivessem ficado na cama. Livrou-se dos problemas e das preocupações. Agora tinha que se preocupar em se arrumar para ir à escola. Lá, ia procurar um revigoramento para enfrentar tudo que vinha acontecendo em sua vida.         
         A pouca luz que havia em seu quarto, foi multiplicada por mil, quando abriu a janela. O quarto tão familiar se revelou à garota: a cama, em que estava deitada, com uma colcha azul, encostada na parede; esta pintada de rosa clarinho, ao lado uma escrivaninha pequena para os estudos; na outra parede oposta à janela, uma prateleira com alguns ursinhos de pelúcia e do lado direito o guarda-roupas que ocupava todo este canto de seu quarto. Bem abaixo da prateleira, estava uma mesinha com um computador, que havia algum tempo que ela não tinha mais vontade de usar.
         Abriu o guarda-roupa, pegou algumas peças de roupa, jogou todas em cima da cama e, quando fechou a porta deste, se olhou no espelho formando um lindo sorriso com a imagem que apareceu.
         Amanda Cristina viu seus lindos cabelos, ruivos e encaracolados, que combinavam com os seus olhos negros. "Você puxou os olhos da sua vó, que era índia”.Sempre dizia sua mãe, que também reclamava que ter os olhos tão negros não ajudavam-na a reconhecer se a sua filha estava triste ou alegre."Eles escondem sentimentos", dizia ela. Seus cabelos ainda combinavam com o leve rosado de suas bochechas. Aos 13 anos e vaidosa como era, percebia que seu corpo não deixava a desejar. Era feliz com tudo o que via e sabia que, com seu corpo ainda em desenvolvimento, não iria se impressionar se, em dez anos, olhasse no espelho novamente e se sentisse tão bem como se sentia agora.
         Pegou a roupa e foi tomar um banho. Saiu do banheiro de roupão e toalha na cabeça. Procurou suas roupas e se perguntou, depois que lembrou onde estavam, porque sempre as levava para o banheiro. Vestiu-se e soltou o cabelo que lhe batia no meio das costas. Orgulhava-se de nunca ter precisado cortá-lo (apenas apará-lo) e de seu cabelo não crescer descontroladamente. Alguns caracóis balançavam em frente aos seus olhos e, com um toque, foram pra atrás das orelhas, mas sabia que não permaneceriam muito tempo lá.
         Saiu do quarto e foi à cozinha preparar o chocolate que sempre tomava antes de ir para a escola. Ao passar pela sala, percebeu que aquele dia começara como muitos outros. Viu seu pai dormindo esparramado no sofá com a camisa meio-aberta, a gravata amarrotada de lado, um pé calçado e o outro descalço, a calça suja de lama, a barba por fazer e alguns pequenos furos no paletó que pareciam feitos por cigarro. Entendeu que sua mãe tinha tido razão em tentar ajudá-lo na noite passada.
         O rosto de seu pai ali não lembrava de jeito nenhum  como ele era antes da tragédia: era lustrado, cabelos sempre brilhantes, sorriso à mostra, barba bem feita e uma incrível facilidade de conquistar as pessoas com seu jeito alegre; agora, estava quase sempre bêbado, vivia discutindo com sua mãe, os cabelos começavam a branquear e perder o brilho e ele vivia, quase que constantemente, rabugento, afastando as pessoas de si.
         Segurou o choro e prometeu para si mesma, como já tinha feito milhares de vezes, que  ia mudar aquela situação, independente do quanto tivesse que batalhar. “Há batalhas que devemos acreditar que serão vencidas mesmo estando em desvantagem.”
         Na cozinha, com o copo de chocolate nas mãos e ainda se segurando para não chorar, lembrou que tudo aquilo só tinha acontecido depois da tragédia. Jurava a todo momento que um dia aquilo ia se resolver mas, a cada dia que passava, perdia a fé ante aos acontecimentos que a cercavam.
         Sua mãe tinha sido ameaçada de ser despedida, seu pai já não trabalhava com o afinco que antes possuía e ela, a cada dia, piorava na escola.
         Lembrava-se de quando eram uma família feliz e unida e seu pai tantas vezes havia lhe dito que ia se esforçar para dar-lhe a melhor educação e fazê-la a garota mais feliz do mundo. Mas a realidade que a torturava todos os dias, tinha feito dela uma garota que fugia dos problemas e que se equilibrava numa corda onde, cada balanço, representava uma possibilidade de tudo ser destruído de uma vez por todas e ela se perder na obscuridade de seus problemas.
         Esforçou-se mais uma vez para não pensar no que tinha acontecido. Segurou o choro o quanto pôde. Apertou os olhos. A força que perpassou seu corpo refletiu-se na sua mão que começou entrementes a apertar o copo. Ela se apoiou na parede da cozinha. Sua cabeça rodando à mil por hora. E, quando ela abriu os olhos, tudo veio de uma vez...
         À um canto, jogado no lado oposto de onde seu pai estava esparramado no sofá, na sala, estava a foto de seu irmão. Estava toda amassada e um pouco rasgada. Ela não conseguiu segurar mais o choro. As lembranças afloraram em sua mente e como milhares de golpes de uma só vez, seu corpo foi massacrado com a força das recordações...

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